Literatura infantil e os medos e desejos das crianças

"Era uma vez um casal que detestava contar histórias ao seu filho. A criança pedia, chorava, mas nada de elfos, bruxas ou heróis fantásticos aparecerem...
Num sono triste, ela adormecia sozinha até o dia em que aprendeu a ler e, sozinha, descobriu um mundo cheio de fantasias nos deliciosos contos de fada."

Histórias não garantem a felicidade nem o sucesso na vida, mas ajudam. Elas são como exemplos, metáforas que ilustram diferentes modos de pensar e ver a realidade e quanto mais variadas e extraordinárias forem as situações que elas contam, mais se ampliará a gama de abordagens possíveis para os problemas que nos afligem.
Um grande acervo de narrativas é como uma boa caixa de ferramentas, na qual sempre temos o instrumento certo para a operação necessária. Uma mente mais rica possibilita que sejamos mais flexíveis emocionalmente, capazes de reagir de maneira adequada a situações difíceis, assim como criar soluções aos nossos impasses.
As mensagens ocultas nos enredos mais queridos pelos pequenos. Rapunzel, Branca de Neve, O Patinho Feio, entre outros, ajudam os pais e professores a entenderem melhor as preferências e as inseguranças dos pequenos.

Algumas pinceladas sobre as interpretações feitas ajudam a entender um pouco mais as necessidades das crianças, quando preferem ouvir este ou aquele conto e a fazer as nossoas escolhas literárias, enquanto pais ou educadores.

Patinho feio
A saga da ave que nasceu de um ovo grande e esquisito costuma revirar os olhinhos das crianças menores. Rejeitado, o pequeno cisne não encontrava a simpatia no meio dos patos. E acabou sendo obrigado a ir embora. Vagando da casa materna até outras paragens, o pobre Patinho Feio sofre até se sentir bem recebido, o que só acontece depois que ele cresce.
A suspeita que todos temos é de sermos incapazes de nos igualarmos à fantasia que se avolumara no ventre da nossa mãe. Esse temor irá acompanharar-nos para sempre, justificando o sentimento de rejeição que nos identifica ao Patinho .
Em geral, as crianças que gostam dessa história estão a lidar com o sentimento de não satisfazer completamente as expectativas dos pais e a aprender a reagir frente às hostilidades, presentes até nos ambientes onde o amor transborda.

João e Maria
Cruel, mas de final feliz, o conto sobre as duas crianças abandonadas na floresta continua entre os favoritos das crianças, agradando meninos e meninas em igual medida. Isso porque trata de um tema universal: o crescimento.
Crescer traz danos, mas também traz perdas. Estas últimas fazem com que a independência conquistada pelo filho seja vivida como abandono por parte dos pais, já que é muito difícil, neste momento, se reconhecer como autor da própria história.
A casa de doces na floresta e mesmo a aventura de sair por aí sem destino deixam os irmãos encantados. Os perigos que eles passam e as conquistas obtidas atentam para a mudança interior dos dois, simbolicamente. Até o caminho de volta é diferente daquele da partida, apontando que eles já não são mais os mesmos.
A casa para o qual retornam João e Maria também não é mais a mesma, não há mais nela uma figura materna ameaçadora e as riquezas foram conquistas das próprias crianças.

Capuchinho Vermelho
O drama da perda da inocência é o que há de mais evidente nesta história. Capuchinho é uma criança com a ingenuidade de quem não sabe (e ainda não suporta saber) sobre o sexo, mas a sua intuição diz-lhe que há algo mais que inspira os seres humanos.
Na narrativa, a curiosidade infantil é o que mais chama atenção (a menina do capuz esquece as ordens da mãe para passear na floresta, olhar as flores e dar ouvidos a um desconhecido). Mas nada disso acontece por desobediência premeditada, mas sim porque a vontade conhecer mais sobre o mundo dos adultos é muito grande.
E as dúvidas, por mais duro que seja para alguns pais o tema, começam pelo próprio corpo da criança. Ela sabe que ali existe algo mais e, quando vê uma oportunidade, não abre mão de explorá-la.
O propósito? Desvendar o que, até então, não passa de uma suspeita.

Rapunzel
A menina que é aprisionada numa torre por uma estranha madrasta fascina outras meninas. Por ciúmes, a bruxa não permite que Rapunzel fale com ninguém. Tudo corre bem até a chegada da adolescência quando, isolada, a jovem passa a cantar e a sua voz chega à floresta, atraindo a atenção de um príncipe.
O desejo desse homem será o gancho necessário para a separação da mãe. Uma separação reforçada quando a bruxa decide cortar as tranças da filha postiça, a quem ela tanto ama. No fim, Rapunzel acaba decidindo ir embora. Mas não sai pela porta, e sim pela janela, já que a saída oficial não seria aceite pela mãe.

Branca de Neve
O amor e amizade entram em cena nesta bela história. Por um lado, Branca de Neve tem de se a ver com a apatia do pai frente aos desmandos da madrasta má. Mas, por outro, encontra o amparo de que precisa na bela casinha onde moram os anões, todos muito diferentes entre si mas vivendo em condições idênticas (a mesma cama, a mesma comida, o mesmo trabalho...).
As meninas, na primeira infância, são tão amorosamente dedicadas às mães como os meninos. Porém, enquanto estes continuam amando alguém similar à mãe pelo resto da vida (desde, é claro, que sejam heterossexuais), elas terão de abrir mão desse amor para experimentar com o pai os rudimentos do que será o seu objecto amoroso no futuro . Esta transição ocorre sob queixas de abandono e descuido (e a relação de raiva entre a madrasta e Branca de Neve ecoa com mestria esse conflito). Mas é apenas graças ao feitiço da bruxa que o príncipe encontra Branca de Neve (linda e corada, numa urna cristalina) e ambos se apaixonam, vivendo felizes para sempre.

Harry Potter
O fervor causado a cada lançamento da série sobe o bruxinho só reforça a importância dos elementos simbólicos que a história contém. Os filmes e os livros arrebatam a atenção das crianças que ainda nem sabem ler e mantêm este interesse até à adolescência (e começo da idade adulta, em muitos casos).
Porque a curiosidade persiste em idades tão distintas? Isso acontece, em grande medida, pelo local onde toda a ficção se desenvolve: uma escola. A da escolaridade, as crianças contemporâneas aprenderão ali a dividir, a respeitar, esperar a vez e conquistar o espaço . As dificuldades para encontrar um grupo, conquistar a aceitação do sexo oposto, firmar a identidade ante os adultos são comuns e desafiam crianças e jovens (além de trazerem à tona as memórias de quem, há muito, passou por essa fase e hoje lembra com saudade aqueles momentos).

Do livro "Fadas no divã", dos psicanalistas Diana e Mario Corso

Comentários