Perturbações do sono nas crianças

Vários problemas podem afectar o sono das crianças. Geralmente, não são agraves e passam com a idade, mas é preciso dar-lhes atenção e ajudar a criança a ultrapassá-los. Muitas vezes, o melhor remédio é a paciência.

Insónias
As insónias podem ser um problema temporário nas crianças, muitas vezes associados aos «touch points» – momentos críticos do desenvolvimento. Muitos outros factores podem contribuir para um mau dormir, como qualquer mudança – seja de quarto, de casa, de colégio, alterações na família ou doença.

Terrores nocturnos
Não se devem confundir terrores nocturnos com pesadelos, e a idade em que acontecem os primeiros é mais precoce. No terror nocturno, a criança grita – muitas vezes um autêntico grito de terror, mas ao contrário do pesadelo, em que o próprio está assustado, quem fica mais receoso, neste caso, são os pais -, senta-se, está agitada, parece estar a lutar contra monstros ou «possuída», às vezes quase alucinada. Mas não está acordada, como nos pesadelos.
Quando os pais se aproximam, a criança parece não perceber quem eles são e até os afasta, com comportamentos que parecem ilógicos. O que acontece, no terror nocturno, é uma mudança do ciclo de sono, mais na segunda metade da noite, com um estádio que nem é de dormir nem é de acordar, uma zona cinzenta que não dá para perceber a realidade como é, mas que a inclui no sonho – e os pais podem parecer os hipotéticos monstros que a perseguiam.
Tentar acalmar não resulta, para desespero dos pais – mas nunca se esqueçam que, por paradoxal que pareça, aquela figurinha a mexer-se, a gritar e a espernear, não está a sentir medo. Repito: um terror nocturno não é um pesadelo. Muitas vezes não fazer nada é a melhor solução e a criança volta a deitar-se e a dormir.
O que fazer num terror nocturno?Há duas hipóteses, para os pais actuarem. Uma, que resulta pouco, é tentar que a criança acorde. Se ela acordar e percepcionar os pais, já rompeu com o estádio anterior e a partir daí poderá regressar ao sono, se bem que possa aí ter medo.
Outra opção – que resulta mais frequentemente – é não a acordar e, pelo contrário, reencaminhá-la para o sono, «reescrevendo» o guião do filme. Dizendo, por exemplo, «e depois veio o Noddy e o Ruca (ou qualquer outro herói do momento), e mais o teu ursinho, e então os maus foram embora e foram todos fazer um grande ó-ó porque estavam muito cansados e foi muito bom».
Tudo isto dito em voz «off», calma e tranquila, ajeitando a criança na cama e transformando esse momento de completa disrupção numa reorganização corporal e mental. Passado um bocadinho a criança está a dormir.

Pesadelos
Os sonhos acontecem na fase REM do sono, quatro a cinco vezes em cada noite, mas dependente da pessoa, do que se passou durante o dia e da fase de desenvolvimento em que se está. Alguns sonhos são aterradores. E se a um pesadelo, um «sonho mau», como tão bem designam as crianças (porque há sonhos bons, reconfortantes, engraçados, que até desejamos que continuem quando acordamos), se junta um estádio de alerta prévio mais intenso, então é provável que a criança acorde e se sinta desfasada e com medo.
Não se sabe o que desencadeia o tipo de sonho – a actividade de organização cerebral é intensa e pode ser o cruzamento de informação e a associação de ideias que gera um enredo desagradável. Sabe-se que certos incómodos físicos – camas pequenas, dormir sobre um braço ou uma perna e magoar, ter a bexiga distendida, ter frio – podem ajudar a que o guião do filme deslize para o género «thriller».
A «idade dos pesadelos», se se pode definir alguma, começa sobretudo por volta dos três anos, coincidente com a fase em que a fantasia é mais intensa. Ao contrário dos terrores nocturnos, em que a criança está numa «twilight zone», semi-acordada, nos pesadelos ela acorda mesmo e diz aos pais que «teve um sonho mau». E até se lembra dele no dia seguinte.
Claro que os sonhos são como os filmes: de vez em quando há filmes «que metem medo» e ter um pesadelo de vez em quando é normal. Se se acentuam e tornam-se quase rotina, então é sinal que a criança não está bem, podendo até ser apenas um período especial de stress – entrada na escola, mudança de casa, nascimento de um irmão, morte de alguém próximo...
Alguns autores afirmam que os estímulos mais recentes, em termos do timing de ir para a cama, podem influenciar o tipo de sonho. Dito de outra forma, se uma criança estiver a ver um filme de terror na televisão antes de se deitar, terá mais probabilidades de ter um pesadelo.
Mas atenção: tudo depende, mais do que do conteúdo, do inesperado e de como a criança vive a situação. Uma coisa é um filme de terror, inesperado, com cenas em que – nós próprios – não sabemos antecipar o que vem a seguir. Este é um fenómeno de insecurização.
Outra coisa são as histórias infantis em que há vilões, desde o lobo mau à bruxa da Branca da Neve – vilões que maltratam os «bons» e que lhes desejam a morte, ou que até os tentam assassinar, como é o caso da bruxa e da maçã, ou da história da casinha de chocolate. Mas aí é mais fácil a criança entender o final – o Bem triunfa – e já antecipa o que acontece, além de que sabe que é do domínio da ficção.
Daí a necessidade de, por vezes, mudar o fim à história: a temperatura da água do caldeirão onde o lobo mau cai e o que lhe acontece varia conforme os dias...

O que fazer quando a criança acorda com um «sonho mau»?
A criança acorda mesmo e muitas vezes até se consegue lembrar do sonho. É importante a presença dos pais para testemunhar que «tudo não passou de um pesadelo». E isso tem que ser dito mas, sobretudo, mostrado afectivamente, com abraços e colinho. Só assim, através do mimo, consegue libertar-se do medo.
A voz tranquila da mãe ou do pai ajudam muito, mas para isso não podem estar a pensar em si, na noite interrompida, no trabalho do dia seguinte ou que já não vão dormir essa noite. Às vezes é preciso fazer uma vistoria ao quarto, para ajudar a entender que não está nenhum monstro escondido. E finalmente, dizer-lhe taxativamente: «tiveste um sonho mau, mas foi só um sonho». E pegando em algo que a criança diga – servindo-se também do objecto transicional e de heróis da sua vida (Noddy, Ruca), começar a mostrar, através de uma história que tudo agora até vai ser bem divertido.
A análise do sonho poderá ficar para o dia seguinte num ambiente de brincadeira. «Imagina o que foste logo sonhar! Sabes que eu, quando era pequenina, sonhei um dia com um elefante que saía do Jardim Zoológico e dava banho a toda a gente com a tromba?». Convém perceber ­– quando os pesadelos se repetem ou quando são sempre sobre o mesmo tema – se há algum factor na vida da criança que lhe possa estar a provocar stress. Se as coisas não estiverem a melhorar, será bom falar com o médico-assistente. .

Sonambulismo
Define-se sonambulismo como o «semi-acordar e andar». Em certa medida, é semelhante ao terror nocturno, dado que se fica na tal zona cinzenta entre o acordar e o não acordar, no final do ciclo não-REM, equivalente ao sono profundo. Pode corresponder a fases de transição de ritmo de sono e a sonhos, e ocorre cerca de duas horas após deitar, embora seja variável de pessoa para pessoa.
Quando se sonha, o corpo imobiliza-se, caso contrário viveríamos (e há quem o faça) os sonhos de uma forma viva (coitado de quem partilha connosco a cama...). Em algumas pessoas (e sobretudo crianças) os mecanismos de «paralisação» não estão completamente desenvolvidos, pelo que a pessoa vive o sonho ou a fase de transição de ciclo deambulando pela casa, com a percepção instintiva e o alerta necessário para não ir de encontro às coisas, mas podendo, por exemplo, sair de casa. O principal problema do sonambulismo é o deambular pela casa.
Para reduzir o risco de acidente, é bom ter uma luz de presença nos corredores e halls. Se a criança dorme em beliche deverá ser sempre na cama de baixo. Proteger escadas e fechar as portas exteriores (ou da casa de banho e da cozinha) à chave é fundamental.Quando dá conta que o seu filho anda pela casa, reencaminhe-o suavemente para a cama, orientando o percurso, sem falar ou dizendo um mínimo de palavras com voz suave e carinhosa.
O sonambulismo passa com a idade, mas se piorar é importante falar com o médico.

Agitação nocturna
As chamadas perturbações rítmicas do sono, ou agitações nocturnas, como bater com a cabeça, virar a cabeça de um lado para o outro continuamente até podem simular convulsões. Durante as crises a criança pode gemer, grunhir, rosnar ou dar gritos. A maioria dos casos é normal.

Bruxismo
O bruxismo é o nome médico do vulgar ranger dos dentes durante o sono. Pode resultar de um controlo ainda imperfeito dos movimentos maxilares, o desalinhamento dentário normal da idade, parasitas intestinais.Tirando as excepções mais graves em que um dentista deve ser consultado, passa por si, embora se possa prolongar até à adolescência.
Os pais podem ajudar, sobretudo quando há stress envolvido, mantendo-se calmos e fazendo da hora do adormecer um momento tranquilo.

Revista Pais&Filhos. Texto: Mário Cordeiro, professor de Pediatria (2009)

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